Farfalhada #2 | Idas ao centro, vírus à espreita

Neste momento, um cientista está no laboratório, o olho arguto sobre a lente do microscópio, desvendando o vírus desconhecido. Eu estou em casa e, em raras oportunidades, na rua, o olho arguto em tudo que vive. O cientista observa o vírus e eu observo o tempo, a matéria bruta e a humanidade.

Duas mulheres saem da academia e caminham juntas pela calçada. Idênticas: shorts e blusinhas curtos, tênis de corrida, toalhinhas em mãos, fones de ouvido. Passam pelo vidro espelhado de uma imobiliária e, em sincronia, admiram seus corpos: batem os olhos no espelho e capturam suas bundas hipermalhadas para depois, talvez, compararem-se uma com a outra. Ao lado do vidro espelhado da imobiliária, os anúncios: “Apartamento três dormitórios, duas suítes, frente para o mar”, “Aluguel de kitnet no centro” etc.

As duas andam mais um pouco e passam pelos assentos de um ponto de ônibus onde um morador de rua está esticado, dormindo, ocupando todos os lugares. Elas não notam o homem imundo e magérrimo. De novo em sincronia, cada uma saca o celular preso ao elástico do shorts e escolhe nova música. Usam máscaras.

Na ponte Hercílio Luz, uma e quinze da tarde, um casal, de trinta e poucos anos, discute. O homem se distancia da mulher, ela vai atrás: “Para de ser idiota! Vem aqui, Rafael”. Não usam máscaras.

Rua movimentada do centro, em frente à loja chinesa de bugigangas, uma mulher e suas três filhas. Muçulmanas, passeiam como se o mundo estivesse saudável e propício a passeios. O mundo árabe (de maior parte muçulmana), a China e a África subsaariana remodelarão, para as próximas décadas, a geografia mundial. Serão, muito provavelmente, o colapso ecológico e a xenofobia os dramas infernais deste século. O Oriente Médio e parte da África serão as primeiras regiões a ferver. Suas populações necessitarão de abrigos estrangeiros. Minha fé, minha utopia, é que possam ser bem recebidos. Uma vez que, em relação ao clima e à biodiversidade, a fé é nula: o planeta vai esquentar e vai degradar-se. A mãe que, dentre as quatro, é a única de véu, conta dinheiro. Uma das meninas não tira os olhos do celular. Todas usam máscaras parciais: estão no rosto, mas não cobrem todo o nariz.

Um homem branco, gordo, de barba ruiva, capacete na mão, ao lado da esposa — um pouco à frente, na verdade, como um macho que orienta o caminho. Ofegante, fuma cigarro. Saúde péssima. E ainda é jovem. Dentre tantos sem máscara, parece ser o menos preocupado: talvez não acredite na pandemia.

Fila em frente à loja de aviamentos. Mulheres de meia idade e senhoras. É inverno e, portanto, estão atrás de agulhas e linhas grossas para poderem costurar casacos para si mesmas, maridos, filhos, netos, vizinhos. Mulheres que sustentam o Brasil.

O termômetro de rua publiciza uma marca de nome estrangeiro: “Que nunca nos falte a esperança de dias melhores”. O termômetro de rua marca 23º em Florianópolis.

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