Farfalhada #3 | idas ao centro, vírus à espreita

Ao chegar no centro, tenho que comprar marmita para mais um morador de rua estropiado e faminto. Não quero: tenho que pagar. Ninguém me obriga: a consciência me guia. A fome é uma das experiências mais radicais da vida.

Uma pessoa em condição de rua, que, para se alimentar, depende da população da nossa sociedade doente e mesquinha, deve viver em desespero. Passar frio e fome nas ruas imundas do centro de uma cidade grande deve ser, com certeza, uma das experiências mais aterradoras da vida.

Ele aborda uma mulher, que nega. Pede para mim, e eu também nego. Mas, dez metros à frente, retorno e faço o que tenho que fazer. Porque hoje mesmo o governo federal depositou R$ 600,00 na minha conta corrente. É o auxílio emergencial em razão da pandemia. Com R$ 600,00, vivendo numa casa maravilhosa, sem ter que pagar aluguel, estou no centro para comprar linha encerada para costurar cadernos, fitas para máquina de escrever, a taxa de envio de um livreto pelos Correios. Quão miserável eu seria ao negar R$ 13,00 para encher a barriga de um semelhante?

Como mistura, ele pede frango grelhado e bife de alcatra. Peço para ele segurar a minha bicicleta enquanto entro no restaurante para pagar. Ele diz para eu ficar sossegado, que vai cuidar da bicicleta. Retorno, e ele me olha profundo, apenas com o olho direito — o esquerdo não abre, talvez seja cego deste olho. Pergunto seu nome e me diz que é Márcio. Tem a gentileza de perguntar o meu. Sensibilizado, toca meu ombro e, mais uma vez, agradece. Retribuo com “bom apetite, seu cuida e fica com deus”.

Duas quadras antes de cruzar com Márcio, eu estava pensando sobre o processo de desmitificação da humanidade. De que a civilização é guiada cada vez menos pelos mitos, cada vez mais pelos dados. Nosso tempo é o início da era dataísta, em que o número e a informação passarão a valer muito mais que as histórias.

Mas os dados não seriam novos mitos? De certa forma, sim. Mas um mito frio, técnico, sempre em função de resultados. A humanidade que se datatifica, penso eu, não se desumaniza — porque a própria ideia de desumanização é uma utopia: tudo de mau que a nossa espécie fizer ainda está na ordem do humano. Mas a humanidade que se datatifica, ao passo que se desmitifica, torna-se o próprio dado. Os corpos serão cada vez mais números e pacotes de informações do que Joões, Marias, Cláudias, Márcios; cada vez mais dados que histórias de vida.

Mas os mitos antigos — os religiosos, por exemplo — estão demasiadamente encarnados no arcabouço da história humana. Ao contrário de se embotarem em detrimento do paradigma dataísta, eles reagirão. E um mito antigo que reage é sempre um perigo: pode irromper em forma de fanatismos, guerras, massacres. Perdendo tempo e espaço, sufocadas pelos ditames científico-tecnológicos, as antigas tradições atacam: nacionalismos, terrorismos, fanatismos religiosos. Claro que há a possibilidade de sincretismo. Na verdade ele já existe: o atual presidente da Índia é um hindu fervoroso e conservador e, no entanto, está subordinado à regra do capital, tem que jogar a narrativa do liberalismo.

Sem um mito que contemple a supremacia de forças muito maiores do que nós, o ser humano é apenas um vírus técnico, um micro-organismo viciado em forjar melhores desempenhos, uma fissura narcísica desamparada no universo e sedenta por dominá-lo. A ciência moderna é um paradoxo colossal: responsável por proporcionar infinitos avanços técnicos, também é ela quem articula nosso drama mais profundo — com a ciência, o mar, rio, as florestas não são entidades divinas às quais pertencemos e das quais dependemos, mas recursos naturais a serem explorados.

Ao longo dos últimos quinhentos anos — com maior destaque aos últimos duzentos e cinquenta, a partir da primeira revolução industrial — o ser humano moderno, branco, eurocêntrico, construiu uma monumental e sofisticada fortaleza de segurança, estabilidade e conforto para nos proteger das hostilidades da natureza. Devo, em partes, meu bom desenvolvimento físico e saúde a esse projeto que criou vacinas e não me deixou morrer de poliomielite quando criança. Posso digitar este texto porque tenho um notebook e acesso à internet: mais alguns dos tantos adventos fantásticos, frutos desse projeto.

A fortaleza que foi erguida, porém, em velocidade assustadora, está desmoronando: o projeto não previu cuidados básicos em relação ao entorno, não se atentou a uma realidade básica: de que qualquer tentativa grave de isolamento entre nós e a biosfera, qualquer mínima realização de querer sobrepujar suas forças é um ato suicida. O solo está contaminado, os oceanos intoxicados e convulsionados, o sol está rachando as paredes da fortaleza.

Afinal de contas, valeu mesmo a pena todo o avanço civilizacional que a ciência moderna — esse mito frio e duro — nos proporcionou? Essa brutal descompensação em ter e dominar tudo para, em seguida, perder tudo e ser arrasado, com grandes chances de ser extinto, foi mesmo uma aposta sensata, inteligente?

Um ameríndio, um aborígene, que tiveram a força e a sabedoria para sobreviver neste mundo devastador da pluralidade étnica e cultural, bradam, com os pulmões cheios, os olhos cintilantes e a voz grave: “Não, não valeu a pena. Jamais esse foi o melhor caminho para a humanidade”.

É provável que Márcio, o morador de rua, saiba de deus — um mito, que é um meio para expressar uma realidade profunda, suprema — mais que muitos engenheiros, agrônomos, matemáticos, cientistas da computação, pesquisadores, intelectuais. Por saber da grande probabilidade de nunca mais o encontrar, registrei bem seu semblante. E segui pelas ruas do centro, em função dos meus compromissos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *